Aconcágua: O inóspito campo base na Plaza de Mulas

Os perrengues e as dicas para acampar no campo base da montanha mais alta fora da Ásia


Dos 7 dias de trekking pelo Parque, pode-se afirmar que o dia da caminhada até a Plaza de Mulas é o principal e o maior desafio de todos. A Plaza de Mulas é o campo base tradicional para se alcançar o cume do Aconcágua e, normalmente, as pessoas que vão até lá tem esse propósito e vão com uma empresa de escalada contratada. Dessa forma, o material para acampamento, barraca, comida e a própria mochila é levada através de mulas da empresa. A pessoa enfrenta a grande distância e a altitude estando praticamente leve. Mas no meu caso, que estava fazendo o trekking por conta própria, sem apoio de empresas, a mula da ocasião era eu mesmo!!!

Início da trilha até a Plaza de Mulas, o campo base do Aconcágua


TREKKING ATÉ A PLAZA DE MULAS

Acordei cedo no acampamento de Confluência, mas até desmontar a barraca e preparar as coisas para partir, acabei iniciando a caminhada às 9h30 da manhã. A trilha começa descendo até um rio, passando por uma ponte e subindo de novo (lembrando que cada subida é um martírio naquela altitude, principalmente levando peso). Um placa diz que o percurso até a Plaza de Mulas dura 8 horas, uma outra diz que dura 10 horas. São 19 km aproximadamente de trilha.

Uma ponte nova e bem conservada marca o início da trilha 


Depois da subida desde o rio, a trilha continua por um terreno quase plano, com uma inclinação bem leve. O caminho segue beirando o curso de um rio de águas de degelo que desce das montanhas, principalmente do Aconcágua. Naquele local, a vegetação é baixa mas evidente, tornando o cenário verde. A água é barrenta avermelhada, somente em alguns pontos corre água transparente.

A trilha tem uma pequena inclinação, quase plana


O verde da vegetação rasteira, o branco da areia e o vermelho da água barrenta


As mulas transitam nesse percurso levando e trazendo material das empresas


Em certo ponto a água se afasta e o cenário desértico lembra o deserto do Atacama, no Chile, ou Uyuni, na Bolívia. Parece também que aquele é outro planeta, seria um excelente cenário de filme de ficção, mas acho que levar equipamento de cinema até ali seria um pouco sofrido. Apesar do sol, o vento gelado causa frio e sopra poeira o tempo todo na cara. A poeira parece ter bastante sal, afinal aquilo já foi um mar a milhares de anos atrás. O sal potencializa o efeito do sol, causando queimaduras na pele. Resumindo: para deslocar naquele ambiente hostil é necessário cobrir o corpo todo.

O verde e a água desaparecem e o terreno fica desértico


Esse cenário se passaria fácil por Marte ou Júpiter num filme de ficção


É necessário proteger o corpo do sol e das rajadas de vento com poeira e sal


Fui premiado com uma rara aparição de uma llama na trilha


PLAYA ANCHA

Depois de percorridos aproximadamente 8 km desde a saída de Confluência, cheguei no lugar conhecido como Playa Ancha (praia larga, em espanhol). Ali, a trilha passa por uma área alagada, basta pular as faixas rasas de água corrente até chegar do outro lado. A trilha então continuou por um caminho longo e pedregoso, com rajadas de vento mais intensas.

Uma larga área com faixas de água que se dispersam é conhecida como Playa Ancha


Montanhistas retornando da Plaza de Mulas pela Playa Ancha


As mulas levantam mais poeira naquele caminho pedregoso


Por volta das 13h30 fiz uma parada para "almoçar" em uma curta sombra encontrada naquele deserto. Depois de caminhar mais alguns minutos, cheguei em outra área alagada com faixas de água corrente, porém, diferente da Playa Ancha, formava um volume maior de água, difícil de atravessar sem entrar na água. Perdi bastante tempo tentando cruzar aquele rio, tentando achar um ponto mais estreito para pular a água, até que cheguei num local que era impossível pular de uma margem para a outra, o jeito foi tirar a bota e andar descalço por dentro da água gelada, com cautela para não ser derrubado pela correnteza.

Parada para comer numa sombra rara


Rio que escoa com várias faixas de água, difíceis de pular por entre as margens


Neste ponto tive que tirar as botas e prosseguir por dentro do rio


PIEDRA IBANEZ

Depois de seguir pelo meu lado direito, beirando o rio que descia, cheguei nesta pedra que é um ponto notável do terreno, localizada a 3.780 metros de altitude. Aquele local era uma antiga área de acampamento (inclusive, a Piedra Ibanez é citada na ficha de controle do permiso do Parque). Ali completava 14 km de caminhada, ou seja, faltavam 5 km. Porém, a placa anunciava que ainda demoraria cerca de 4 horas até a Plaza de Mulas. Isso tudo? Pois é, a partir desse ponto a trilha começa a ficar íngreme!

A Piedra Ibanez marca o início da subida


Previsão de mais 4 horas de caminhada


O cansaço de ter andado tantos quilômetros carregando peso e passando por obstáculos parece ser multiplicado por 2 ou 3 devido à altitude. E para piorar as coisas, as subidas tornavam tudo mais complicado. Só que teve uma coisa bem pior que aconteceu: a água acabou! Eu havia levado apenas 1,5 litros de água e não reabasteci porque a água no caminho era barrenta. O ar seco causava a necessidade de água e a sede se somou ao cansaço da altitude. Foi então que chegou a terrível Costa Brava, uma subida bastante íngreme com areia e pedras soltas. A cada meia dúzia de passos eu tinha que parar para respirar. Quando cheguei no topo, depois de muito sofrimento, havia outra descida e outra subida íngreme antes de chegar na Plaza de Mulas. 

Trilha final com subidas para chegar na Plaza de Mulas


Está vendo o mesmo que eu? ou será alucinação da altitude??


"Nada é tão ruim que não possa piorar"


CHEGADA NA PLAZA DE MULAS

A sede era enorme e o corpo parecia sem energia. Depois de deslocar em "câmera lenta", cheguei na Plaza de Mulas já escura, às 22h00. Bati na porta do guardaparque para fazer o check in e expliquei que cheguei tarde devido ao esgotamento por estar sem água. O funcionário do parque me deu um galão de 5 litros de água. Achei legal da parte dele, mas quando ele chamou a sua chefe, me estressei com a atitude dela. Chegou estressada (provavelmente porque saiu da cama quente para o frio congelante da noite), dizendo que eu não deveria ter chegado à noite. Ora, sério? Eu cheguei à noite com sede e morrendo de frio por que eu quis! 😠 Como eu não estava com muita energia para discutir, fui montar a barraca e dormir.

Caveira de mula dá as boas vindas à Costa Brava, ao fundo


PLAZA DE MULAS

Acho que praticamente todas as pessoas que estavam lá foram com empresas contratadas e tinham a intenção de escalar o Aconcágua, afinal, que maluco em sã consciência carregaria todo o peso sozinho para chegar naquele lugar complicado? Eu, é claro.

Plaza de Mulas, o campo base localizado a 4.300 metros acima do nível do mar


Acampamento da Plaza de Mulas


Local se subida para a escalada do Aconcágua


Placa em homenagem a um montanhista morto na escalada


O Parque informa que na Plaza de Mulas não há banheiro público, ou seja, é necessário contratar uma empresa para usar o banheiro. Mas na verdade não é bem assim! Na minha fatídica chegada com sede e frio, descobri que também não há locais públicos para montar a barraca e nem local público de coleta de água, ou seja, não há outra saída a não ser contratar uma empresa na Plaza de Mulas. Funciona como um camping em que se paga para usar o espaço da empresa e pode usar banheiro e a água. Fiquei na empresa Inka Expediciones, uma das mais bem estruturadas e com uma equipe bem simpática coordenada pela Lorena, uma pessoa super legal! O valor cobrado foi bem acessível: 5 USD.

Cozinha da Inka Expediciones


Um dos banheiros disponíveis pela empresa


Interior do banheiro, com álcool gel, desinfetante e desodorizador de ambiente


A guardaparque me explicou que o valor cobrado pelas empresas para usar o banheiro é devido ao custo causado pela fossa. Todos os detritos dos banheiros são levados de helicóptero, nada fica lá na montanha. Eu tive a prova que chegar até ali não foi fácil, acho que por isso aquele lugar se chama "Plaza de Mulas", pois são esses animais que trazem a maioria dos materiais para manter a estrutura. É possível até contratar internet ali, além de fazer refeições num restaurante chamado Pared Sur. Mas toda facilidade custa caro naquele local, por exemplo, uma porção de batatas fritas custa 30 USD no restaurante!!! Como eu estava debilitado, paguei 35 USD para jantar um Lomo Completo (sanduíche grande de carne), acho que foi a refeição mais cara que eu já paguei na vida!!!

Restaurante Pared Sur


Cardápio com os preços (absurdos!) em dólar americano


QUAIS SÃO AS PRINCIPAIS ATRAÇÕES?

Como eu não iria escalar o Aconcágua, afinal isso duraria mais de 20 dias, aproveitei o meu quinto dia no Parque para explorar os arredores da Plaza de Mulas. Mas o que tem para fazer lá em cima? O gelo é uma novidade, principalmente para um brasileiro natural do Rio de Janeiro como eu. Vale uma caminhada pelas geleiras que cercam o acampamento. Outras atrações são: o hotel abandonado, uma antigo refúgio histórico que fica a 1 km de caminhada; e a lagoa, que é mais bonita quando o sol ilumina diretamente. 

As geleiras ficam próximas do acampamento


Sim, era natal! Passei brincando na neve


O hotel-refúgio abandonado é uma atração histórica perto da Plaza de Mulas


Mas a principal atração é admirar o Aconcágua cujo cume parece estar tão perto olhando do campo base. Abrir a janela da barraca e ter o Aconcágua ali do lado, coberto de gelo, não tem preço! Uma cena inesquecível acontece no nascer/pôr do sol quando o sol ilumina a montanha que fica amarelada ou avermelhada. Algumas pessoas enfrentam o frio da madrugada para fotografar esse efeito de luz pela manhã.

Final de tarde e o sol faz um efeito de luz que impressiona


MAPA DO PARQUE DO ACONCÁGUA



MEU ROTEIRO

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Comentários

  1. Bacana tua aventura, ainda quero fazer igual.

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  2. Muito legal e útil seu relato! Vou tentar o cume do Aconcágua com uma agência em janeiro de 2022 e seu texto me ajudou muito a conhecer um pouco do que me espera. Obrigado!

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  3. Em 2022 não se pode mais fazer este caminho sem guia.

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  4. Olá, adorei o seu relato. Eu e meu marido fomos até o Confluência. E seu relato nos motiva a ir mais adiante numa próxima vez.

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Sobre o autor

Sobre o autor
Renan é carioca, mochileiro, historiador e arqueólogo. Gosta de viajar, fazer trilhas, academia, ler sobre a história do mundo e os mistérios da arqueologia, sempre comparando os lados opostos de cada teoria. Cada viagem que faz é fruto de muito planejamento e busca conhecer o máximo de lugares possíveis no curto período que tem disponível. Acredita que a história foi e continua sendo distorcida para beneficiar alguns grupos, e somente explorando a verdade oculta no passado é que se consegue montar o quebra-cabeça do mundo.