Roteiro completo da travessia da Serra Fina (sem guia)

 Uma aventura raiz (e como ela mudou)

Quem me conhece sabe que eu fujo de passeio engessado e trilha formatada com guia. Só aceito isso quando não tem outro jeito. Em 2017, encarei uma das travessias mais desafiadoras do Brasil: a Serra Fina, um clássico do montanhismo nacional, conhecida pelo esforço físico exigido e pela escassez de pontos de água. Foram dias de caminhada intensa, mochila pesada e paisagens de tirar o fôlego. Uma aventura raiz, do jeito que eu gosto. Mas muita coisa mudou desde então.

Em julho de 2020, a Serra Fina foi atingida por um incêndio devastador que destruiu mais de 600 hectares de vegetação. Somado à pandemia, o estrago levou ao fechamento da trilha por quase dois anos para recuperação ambiental. Quando reabriram, veio um novo modelo de visitação: controle de acesso, número limitado de visitantes por dia, cobrança de taxa e trechos com cordas, escadas e "melhorias" no trajeto, inclusive o famoso e atolado Vale do Ruah, que agora tem calçamento de pedras. Até a chegada na Nativa Serra Fina (antigo Sítio do Pierre) ficou mais burocrática: se não quiser pagar a taxa para o carro entrar, prepare-se pra andar mais 3 km de estrada de terra no final da trilha.

Confesso que a parte que mais me incomoda é justamente esse "pedágio" que foi a cobrança para fazer algo que sempre foi livre. Então, no relato a seguir, conto como foi minha travessia no "modo raiz", que era possível em 2017, com todos os perrengues, paisagens incríveis e dicas práticas pra quem quiser (ou ousar) se jogar nessa jornada entre Minas, São Paulo e Rio de Janeiro.  Mesmo com as mudanças, acredito que vai ser útil para entender, de forma detalhada, a essência do lugar e se preparar para os desafios da trilha.


COMO CHEGAR?

Saí do Rio de Janeiro e peguei um ônibus da Viação Cidade do Aço até Cruzeiro-SP. Em 2017, os horários eram:

06:15 → 09:20 – R$ 53,70

10:30 → 13:35 – R$ 53,70

14:15 → 17:25 – R$ 73,60

19:00 → 22:05 – R$ 53,70

Cheguei à noite em Cruzeiro e, dali mesmo, peguei outro ônibus da mesma viação até Passa Quatro-MG (R$ 19,00). De Cruzeiro-SP a Passa Quatro-MG foram 23 km.

📌 Dica: Os horários da linha Cruzeiro–Passa Quatro eram 06:15, 10:30, 14:15 (executivo), 19:00 e 20:45.

O ônibus me deixou na beira da estrada, e de lá eu atravessei a estrada no escuro e depois uma ponte, já caindo nas ruas de pedra de Passa Quatro, uma cidadezinha tradicional no sul de Minas.


ONDE FICAR?

Me hospedei no Hostel Harpia, da famosa Tia Doca, em frente aos Correios. O lugar é uma casa antiga, com jeitão histórico, bem acolhedora e vibe de “casa da vó trilheira”. Paguei R$ 65,00 com café da manhã engrenado. Café com direito a reforço moral antes da trilha. Eles ainda ajudam a conseguir transfer pro início da trilha e até o resgate no final.

Entrada do Hostel Harpia

TRANSFER PARA A TRILHA

No dia seguinte, depois de encher a barriga, fomos atrás do transfer até a entrada da trilha. O bom é que o próprio hostel ajuda com os contatos. Os preços são pelo carro e podem ser divididos em grupo.

Recebi duas opções:

Graciele – R$ 450,00

Antônio – R$ 300,00 (pegamos esse, óbvio)

O carro do Antônio era uma kombi escolar raiz, que entrou firme pela estrada de terra na altura do Clube de Campo. O trajeto até a Fazenda Toca do Lobo tem cerca de 13 km e passa pelo Refúgio Serra Fina. Chegamos na entrada da trilha às 8h30.

Outros contatos úteis de transfer:

Patrícia – WhatsApp (35) 99564-730

Edinho – (35) 9963-4108 (Vivo) / 9109-2022 (TIM) / 3371-1660 (fixo)

O transporte até o início da trilha foi de Kombi escolar

Porteira da Toca do Lobo (início da trilha)

DIA 1: TOCA DO LOBO AO CAMPING AVANÇADO

Logo de cara, depois de uma trilha curta, cheguei a um riacho onde está o Camping Prainha (1.778 m). Mas não se iluda. O que vem depois é pedreira. A subida começa em meio a arbustos. Dizem que o primeiro dia é o mais puxado… e não mentem. Cada passo é tipo academia nível monge tibetano.

 Ponto de água 1: Fica abaixo da trilha e dá trabalho buscar. Leve paciência.

Depois vem um cume de referência chamado Quartizito (2.013 m) e depois o caminho com o visual do Passo dos Anjos, uma crista estreita com visual que dá nome à Serra Fina. Mesmo com o tempo nublado, o cenário era místico, tipo cena de filme com neblina e penhascos.

A subida começa a engrossar. Tem escalaminhada, corda, escada e trilha bem vertical até o Pico do Capim Amarelo (2.489 m), onde chegamos às 15h00, após 6h30 de caminhada. Dá pra ver o Vale do Ruah, os Marins e Itaguaré… e o tanto de subida que ainda vem nos próximos dias.

Ah, atenção no GPS: a trilha correta sai pela esquerda do cume. Não caia na tentação das trilhas erradas. A descida do Capim é escorregadia. Bastão ou bambu salvam. O Camping Avançado estava lotado, então seguimos até uma clareira protegida por capim alto, conhecida como Camping Taquaral. Pequeno, mas bom para sobreviver ao frio quando o sol caiu.

Riacho no Camping Prainha

Subida da trilha

Passo dos Anjos

A trilha passa pela crista "fina" da serra

Pico do Capim Amarelo

Procurando ligar para acampar após o Capim Amarelo

Camping no Taquaral


DIA 2: DO CAPIM DOURADO À PEDRA DA MINA

Depois de um primeiro dia puxado, com subidas que pareciam não ter fim, a gente acorda achando que o pior já passou. Spoiler: não passou. O trecho entre o Capim Amarelo e a Pedra da Mina é mais técnico, mais exigente e definitivamente não deve ser subestimado.

Acordamos por volta das 7h da manhã. O céu começando a clarear enquanto o mato ainda carregava o orvalho da madrugada. Tomei aquele café da manhã de trilheiro (o que tinha na mochila), desmontamos o acampamento e começamos a caminhada às 8h.

O trecho Capim Amarelo → Pedra da Mina é traiçoeiro. Sabe aquele tipo de subida que vem disfarçada de descida? Pois é. A trilha é marcada por uma sequência de sobe-desce com trechos expostos, escorregadios e de pura escalaminhada em pedras soltas. Nada absurdo se você estiver com preparo e cautela.

Logo após deixar a zona do Capim, entramos na famosa Crista do Melano, um dos trechos mais marcantes da Serra Fina. A trilha avança por uma aresta estreita entre vales profundos, com trechos de escalaminhada e lajes de pedra solta, onde cair não é uma opção. O visual compensa, mas é bom manter o foco.

A escassez de água nesse trecho é real. Não há pontos garantidos de reabastecimento. Nossa única salvação foi o Rio Claro. Abastecemos ali com uns bons 3 litros.

Dica: sempre leve filtros ou pastilhas de purificação, porque confiar na aparência da água pode dar ruim.

Depois do Rio Claro, o terreno volta a empinar. A aproximação até o ombro da Pedra da Mina (um platô antes da subida final) rolou até por volta das 16h. 

A Pedra da Mina (2.798m) é considerado o 4º pico mais alto do Brasil e ali seria o acampamento do final do segundo dia de caminhada. Com a luz do dia se despedindo, ainda deu tempo de montar o acampamento e preparar o jantar antes de escurecer totalmente.

Caminhada até a Crista do Melano

Lajes de pedra na subida da Pedra da Mina

Acampamento no alto da Pedra da Mina

Marco da Pedra da Mina, o quarto ponto mais alto do Brasil


DIA 3: PEDRA DA MINA ATÉ PICO DOS TRÊS ESTADOS

Começamos o dia cedo, desmontamos acampamento, tomamos aquele café improvisado e partimos. Antes de descer, não esqueci de deixar meu nome no livro de cume da Pedra da Mina – tradição obrigatória pra quem alcança o 4º ponto mais alto do Brasil.

Descemos em direção ao Vale do Ruah, com um visual espetacular do vale logo de cara. A dica aqui é clara: não vá pra esquerda! Tem uma trilha que engana e leva para a Trilha do Paiolinho – não é essa! A trilha certa vai em frente, passando por um grande totem de pedras. Os primeiros marcos de pedra aparecem só mais abaixo, então atenção redobrada pra não se perder logo cedo.

Quando fiz a travessia lá em 2017, o Vale do Ruah era um pesadelo de capim alto, lama até o tornozelo e pernas levando rasteira de tufo de mato. Mas parece que os tempos mudaram. A trilha hoje, segundo relatos mais recentes, está bem cuidada, com trechos alagados calçados com pedras e vegetação aparada. Nutelou! rs.

Durante o trecho, fui reabastecendo com água onde dava, porque a próxima fonte confiável só viria lá no fim da travessia. É água pra beber, cozinhar e torcer pra não acabar.

Sobe morro, desce vale, sobe outro morro, desce de novo. E assim fomos até o Cupim do Boi, um morrão sem muita graça, mas que exige respeito. Subimos, atravessamos e começamos a descer rumo à próxima missão do dia: o Pico dos Três Estados.

A subida até o Pico dos Três Estados levou cerca de 1h30min e foi, digamos... chata. Terra preta, ziguezague, mochila pesando e nenhuma brisa pra animar. Mas, como tudo na Serra Fina, quando você acha que não aguenta mais, chega.

Às 14h, cravamos o cume dos 2.665 metros do pico, que marca a divisa de São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro. Três estados, um pico, e um visual de tirar o fôlego (literalmente, por conta da subida). Distância do dia até aqui: 6,8 km. Caminhada acumulada: umas 6 horas até esse ponto

Depois do pico, a trilha é praticamente só descida, perdendo altitude bem rápido. Logo entramos numa mata mais fechada, úmida e escura, e foi lá que encontramos nosso destino de pernoite: a Geladeira. O nome não é à toa: uma mata gelada, úmida, onde o sol parece nem querer entrar. 

A barraca congelou à noite

Trilha pela mata fechada

Subida ao Pico dos Três Estados

Marco dos Três Estados

Assinando o livro do Pico dos Três Estados

Descida do pico

Área de acampamento da Geladeira


DIA 4: ALTO DOS IVOS ATÉ NATIVA SERRA FINA

Café tomado, mochila nas costas e seguimos rumo ao Alto dos Ivos, a última grande subida da travessia. Não é uma muralha, mas exige aquele fôlego que sobrou do dia anterior. Logo no começo, há um bloco de pedra que precisa ser escalaminhado pela direita, nada técnico demais.

Chegando no cume do Ivos, aos cerca de 2.470 metros, fizemos a merecida pausa. Última vista da crista da Serra Fina lá atrás, e aquele sentimento clássico de fim de jornada começa a bater. Ah! No topo costuma ter sinal de celular, então é o momento ideal pra mandar um “tô vivo” e combinar com o transfer/resgate o horário no ponto final.

Do Alto dos Ivos em diante, a trilha finalmente desce de verdade. Mas não se iluda: ainda tem uns sobe-morro surpresa e trechos com chão irregular. O ritmo melhora bastante, mas a atenção continua – especialmente com as pernas já cansadas e mochila empurrando lombar.

Aos poucos, o terreno muda. A vegetação se fecha, o clima fica mais úmido e logo entramos na Mata da Serra Fina. O cenário muda completamente: bromélias, árvores retorcidas, sombra fresca e o som da trilha virando civilização.

A última parte da trilha é um trecho de cerca de 3,5 km praticamente todo dentro da mata, com vegetação densa. A trilha é bem marcada, com fitas vermelhas em alguns pontos e nada muito técnico. Um ponto de água aparece à direita, aproveite, é o último até o fim da travessia.

Logo depois, a trilha desemboca numa estrada velha e bem aberta, praticamente reta, mas ainda tem chão.

O fim oficial da trilha é no portão da Nativa Serra Fina, uma propriedade privada que serve como ponto final tradicional da travessia no lado de Itamonte (MG). Se o seu transfer combinou de buscar aqui, parabéns: fim de jogo.

Agora, se o resgate estiver na rodovia, pode preparar o psicológico: são mais uns 4 a 5 km de caminhada pela estrada (uns 50 min a 1h, dependendo da perna e da mochila). Leve isso em conta pra combinar o horário com o motorista.

Alto dos Ivos e o check no GPS

Trilha fechada no trecho final

Cenário rural é sinal de que a civilização se aproxima

Enfim o resgate na beira da estrada

DADOS PARA PLANEJAMENTO

- DIA 1: Distância: 5,75–7 km - Duração: 8–10 horas - Desnível: +1.070m / -320m

- DIA 2: Distância: 5–6 km - Duração: 6–8 horas - Desnível: +756m / -238m

- DIA 3: Distância: 6–7 km - Duração: 8–10 horas - Desnível: +630m / -776m

- DIA 4: Distância: 7–10 km - Duração: 8–10 horas - Desnível: +220m / -1.300m

MELHOR ÉPOCA: Maio a setembro (período seco).

EQUIPAMENTOS BÁSICOS: Mochila 60L+, barraca resistente a ventos fortes, saco de dormir (-5°C), isolante térmico, lanterna de cabeça, shittube (obrigatório para dejetos).

Quando eu fiz a trilha não cobravam permissão, mas agora a coisa mudou. Para fazer a travessia passou a ser obrigatório se inscrever pelo site www.trilhaserrafina.com.br e pagar as taxas.

Uma dica para quem não quer fazer por conta própria:

- Agências: inclui alimentação completa. Grupos de até 6 pessoas: Custo de R$2.300 a R$2.900.

- Guias independentes: Custos a partir de R$1.490 (sem alimentação inclusa).


Siga também A MOCHILA E O MUNDO nas REDES SOCIAIS:




 

Comentários

Sobre o autor

Sobre o autor
Renan é carioca, mochileiro, historiador e arqueólogo. Gosta de viajar, fazer trilhas, academia, ler sobre a história do mundo e os mistérios da arqueologia, sempre comparando os lados opostos de cada teoria. Cada viagem que faz é fruto de muito planejamento e busca conhecer o máximo de lugares possíveis no curto período que tem disponível. Acredita que a história foi e continua sendo distorcida para beneficiar alguns grupos, e somente explorando a verdade oculta no passado é que se consegue montar o quebra-cabeça do mundo.